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Dados ainda inéditos de um estudo feito pelo InCor com jovens usuários de cigarros eletrônicos no Brasil constatou que a maioria possuía quantidades de nicotina no organismo correspondentes ao consumo de mais de um maço de cigarros por dia. AP Photo/Steve Helber

Lobby para mudar lei que proíbe venda do cigarro eletrônico esconde riscos à saúde, sobretudo aos jovens

Uma forte pressão está sendo feita por diversos setores da indústria do tabaco e seu comércio para mudar a proibição de comercialização, importação e propaganda dos cigarros eletrônicos no Brasil.

A proposta de revisão da Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária RD-ANVISA Nº 46, de 2009, encontra-se em consulta pública para coletar as opiniões da sociedade. O prazo dessa consulta, aberta no ano passado, vai até 9 de fevereiro.

A possibilidade de uma flexibilização da legislação que veta o comércio desses dispositivos terá um enorme impacto negativo, sobretudo na saúde da população mais jovem.

Cerca de 1 a cada 4 jovens de 18 a 24 anos no Brasil (23,9%) já experimentou alguma vez um cigarro eletrônico, embora a venda desses aparelhos seja proibida no país. Os dados fazem parte da pesquisa Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis em Tempos de Pandemia, Covitel 2023.

Não há dúvida sobre os graves riscos oferecidos por esses dispositivos. Dados de um estudo que conclui no final do ano passado no Instituto do Coração (InCor), da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, evidenciam que os níveis de nicotina no organismo dos consumidores desses dispositivos são muito altos e, portanto, lesivos.

Realizada entre julho de 2022 e novembro 2023, a pesquisa constatou quantidades alarmantes de um subproduto da nicotina - a cotinina - no organismo de 26 usuários exclusivos de dispositivos eletrônicos, abrangendo uma faixa etária de 13 a 49 anos. Nesse grupo havia cinco adolescentes abaixo de 18 anos.

Os resultados dos testes feitos com essa população revelaram que todos os 26 usuários exclusivos de cigarros eletrônicos apresentaram níveis de cotinina de 600 ng/ml.

A quantidade é equivalente à ingestão diária de nicotina proveniente de mais de 20 cigarros convencionais.

Níveis de cotinina tão altos são normalmente encontrados no corpo de fumantes de longa data de cigarros tradicionais.

Principal substância tóxica presente no tabaco e responsável por criar dependência, a nicotina é absorvida pelo corpo por meio do consumo de cigarros, charutos, cachimbos e produtos sem fumaça. Também atravessa a barreira da pele quando em contato com as folhas de tabaco.

A cotinina é um subproduto da metabolização no fígado da nicotina. Ela é empregada como um indicador biológico para detectar a exposição ao tabaco em testes de drogas, pesquisas científicas e estudos epidemiológicos.

A mensuração dos seus níveis em amostras biológicas, como urina, saliva ou sangue, oferece informações sobre a extensão da exposição ao tabaco.

No caso dos cigarros eletrônicos ou VAPE, a nicotina está presente em quantidades variáveis nos líquidos usados nesses equipamentos, que contêm ainda outras substâncias tóxicas. Todo esse arsenal provoca danos à saúde proporcionais à crescente exposição.

Comércio e consumo crescem

A persistência do comércio ilegal de cigarros eletrônicos no Brasil, apesar da proibição vigente desde 2009, é uma realidade incômoda, perigosa e cada vez mais frequente em grandes centros urbanos.

Nos últimos seis anos, o consumo desses equipamentos no país aumentou 600%, segundo o instituto de pesquisa IPEC, que divulgou dados no início de 2024. O levantamento aponta que o país pode ter atingido cerca de três milhões de adultos usuários do cigarro eletrônico. Paraná, Mato Grosso do Sul e Distrito Federal são os estados onde o uso é mais disseminado, segundo a pesquisa.

Multiplicam-se as plataformas de venda online e ambulantes comercializam o dispositivo nas ruas, atraindo uma população de jovens de classe média e alta. Se o uso for legalizado, produtos com preços menores poderão disseminar o VAPE em grupos de baixo poder aquisitivo.

Em países que legalizaram o VAPE, a venda continua sendo proibida aos adolescentes, que vão ao comércio ilegal. Tanto pelo preço como para obter produtos com teores de sal de nicotina em mais alta concentração.

A negligência das autoridades com o comércio desses dispositivos permite que a cada dia mais pessoas sejam levadas à dependência da nicotina e se exponham às consequências do seu consumo.

Jovens terão danos aos pulmões em idade antecipada

Quero lembrar que a epidemia de tabaco continua sendo um grave problema de saúde pública. Os níveis de cotinina, e em última análise, de nicotina, evidenciados no estudo mencionado permitem afirmar que um número cada vez maior de jovens terá danos aos pulmões, como a doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC), em idade antecipada. A DPOC é hoje a quinta maior causa de internação de pacientes com mais de 40 anos no SUS.

Da mesma forma, essa população começa a vida com risco aumentado de doenças cardiovasculares associadas ao tabagismo, como infarto e acidentes vasculares cerebrais. Se nada for feito, em uma década estaremos lidando com um aumento desses males em uma população cada vez mais jovem.

Em vista desses dados, é necessário que o Brasil mantenha a proibição da comercialização desses produtos, intensifique esforços contra o comércio ilegal e a propaganda enganosa.

Campanhas de conscientização contra a desinformação

A situação demanda também campanha de conscientização nos meios de comunicação sobre os graves riscos de dependência e doenças associadas a esses produtos.

A verdade é que esses dispositivos viciam tanto quanto o cigarro convencional e podem causar doenças. O vape é um produto novo que causa uma dependência intensa e rápida.

É essencial desmentir as promessas enganosas aos fumantes sobre a redução de danos com uso do cigarro eletrônico.

A desinformação oferecida nessa mensagem é a camada final para encobrir a estratégia da indústria de induzir novas gerações ao consumo do tabaco por meio do cigarro eletrônico.

Um dos argumentos de defesa do afrouxamento da proibição de venda é de que seria possível regrar o setor para que o cigarro eletrônico seja fabricado de modo a conter teores menores de nicotina. A fragilidade dessas ideias chega a ser ofensiva.

Países que permitem o comércio do produto regulando teores de nicotina estão enfrentando uma avaladora epidemia de consumo, com cerca de 15% a 25% dos jovens acima de 18 anos fazendo uso regular desses dispositivos.

Com a intensificação da dependência da nicotina, os usuários sentem que o tempo de duração do produto é menor e vão ao mercado ilegal comprar produtos com maiores teores de nicotina.

O comércio clandestino oferece produtos descartáveis com alto teor de nicotina (50 mg) que permitem muitos “pufs”, com cerca de 5.000, 8.000 até 10.000 puxadas. Estes jovens viciados terão que ser tratados da dependência a nicotina para se livrarem deste produto, da mesma forma como tratamos hoje a dependência dos fumantes do cigarro convencional, mais um ônus ao Sistema Único de Saúde.

A permissividade com a venda ilegal de cigarros e o lobby para flexibilizar a legislação desafiam as conquistas feitas pelo Programa Nacional de Controle do Tabagismo. Desde a década de 1980, conseguimos reduzir de 35% para menos de 10% a prevalência de fumantes com políticas públicas como a proibição de fumar em locais fechados e as advertências nos maços.

Diante dos riscos à saúde associados a esses produtos, a Austrália recentemente baniu os dispositivos eletrônicos. França e Canadá estudam proibir também.

A saúde pública brasileira não precisa de mais problemas.

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