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Mulher grávida em protesto contra o PL 1904/2024, semana passada em Brasília: projeto viola convenções internacionais assinadas pelo Brasil desde os anos 70, e tenta impor retrocessos a proteções sociais garantidas pela Constituição de 1988. AP Photo/Eraldo Peres

PL do aborto infringe tratados assinados há décadas e fere princípio jurídico da ‘proibição do retrocesso’

Judith Butler, importante escritora e filósofa contemporânea norte-americana, escreveu recentemente um livro intitulado “Quem tem medo do gênero”, lançado no Brasil pela Editora Boitempo. Nesse livro a autora aborda, citando inclusive os ataques que sofreu no Brasil, como se proliferou no mundo todo um discurso antigênero que interessa e mobiliza a extrema direita e setores religiosos e conservadores da sociedade, inclusive com financiamento.

A pergunta que ela traz no livro é: “que tipo de fantasma esse discurso mobiliza ao provocar tanta ansiedade, medo e ódio?”

Ao refletir sobre isso, Judith Butler mostra como a discussão sobre o “gênero” se tornou para muitos um símbolo de ameaça social. Algo capaz de, bem manipulado, criar insegurança e pânico em determinadas camadas da população, angariando apoio popular a projetos políticos reacionários, excludentes e violentos.

Ao pensarmos na questão do aborto sob esse prisma, as reflexões da autora ganham muita relevância, principalmente no contexto recente do Brasil.

No último dia 12 de junho, foi aprovado o regime de urgência do Projeto de Lei 1904/2024, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que altera disposições do Código Penal relativas ao aborto inclusive retirando o direito das mulheres a realizarem a interrupção da gravidez em casos de estupro após a 22ª semana de gravidez e equiparando a pena para as mulheres que interrompem a de homicídio simples.

O projeto foi votado em um momento em que o presidente da Câmara, Arthur Lira, busca garantir, de forma antecipada, os votos dos deputados mais reacionários ao seu sucessor no cargo. A bancada conservadora, por outro lado, quis fazer um movimento após a suspensão, por liminar, do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, de uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proíbe a interrupção de gestações acima de 22 semanas em caso de estupro. Jogou-se assim com os direitos das mulheres em uma arena de forças e interesses políticos.

Retrocesso sem precedentes

O projeto é de uma perversão atroz. A pena para uma mulher que aborta nesses casos seria maior do que a de quem a estuprasse. No Brasil a maioria das mulheres vítimas de violência sexual tem até 14 anos. São meninas que muitas vezes demoram a descobrir a gravidez porque que estão conhecendo o próprio corpo e por quê tem dificuldade de buscar ajuda já que são vítimas de violência por parte de familiares e pessoas conhecidas.

Do ponto de vista jurídico o projeto é inconstitucional. Viola a dignidade humana, ao impor um sofrimento desmedido a essas mulheres. É também um projeto que viola convenções internacionais assinadas pelo Brasil, como a Convenção de Belém - Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994) e a CEDAW-Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (1979), ao banalizar a violência imposta a essas mulheres. Recentemente, inclusive, o Comitê CEDAW lançou recomendações para que o Brasil legalize o aborto e descriminalize em todos os casos para garantir a plena realização de seus direitos, sua igualdade e sua autonomia econômica e corporal para fazer escolhas livres sobre seus direitos reprodutivos.

O Brasil, contudo, recentemente tem se contraposto às recomendações de organismos internacionais sobre o tema. E parece querer retroceder no que já existe, violando também o princípio internacional da proibição do retrocesso, presente na Constituição Brasileira, e que garante a manutenção de direitos sociais já adquiridos e dispostos em lei.

Na América Latina diversos países tem reconhecido o direito ao aborto como a Colômbia (2022), Argentina (2020), Uruguai (2012), Porto Rico (1976), Guiana Francesa (1975) e Cuba (1968). A Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021 mostra que uma em cada sete mulheres, com idade próxima aos 40 anos, já fez pelo menos um aborto no Brasil. Pesquisa Datafolha indica que maioria dos brasileiros é contra o projeto de lei que altera Código Penal.

O que falta para esse esforço conjunto para descriminalizarmos o aborto no Brasil? Enquanto não assumirmos essa pauta com uma coalizão ampla estaremos constantemente sob o medo de termos nossos direitos cerceados. Conforme alerta Butler, precisamos nos unir a uma posição voltada à resistência e à construção de uma sociedade em que a gente possamos respirar e viver livre do medo da violência. Esse é o princípio de visão ética que necessitamos.

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