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Racismo ambiental? Os erros da Braskem em Maceió e as armadilhas do discurso corporativo de sustentabilidade

Desde 2019, cerca de 60.000 pessoas já foram forçadas a deixar suas comunidades em Maceió, capital de Alagoas, depois que tremores de terra e afundamento do solo causados pela mina de sal-gema da Braskem começaram a colocar em risco a estrutura de casas e prédios ao redor da Lagoa Mundaú, na periferia da cidade. Desde então, bairros inteiros se tornaram cidades fantasmas, deixando uma cicatriz urbana e social na cidade que jamais será esquecida.


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“Já imaginou estar em um bairro e o bairro inteiro desaparecer?”, perguntou Mateus Costa, um empresário local que perdeu dois negócios por causa dos terremotos. “O bairro não existe mais. Não sobrou nada. Os negócios caíram 80%. Quando sua receita cai, você não consegue mais manter o mesmo padrão que tinha. Isso afeta você em todos os sentidos. Psicologicamente, estou arrasado. Dizem que os homens não choram, mas você tem que chorar um pouco”.

Cleber Bezerra, um aposentado que morou perto da lagoa durante toda a sua vida, “teve que sair quando os tremores começaram”. Por sorte, Bezerra tem uma casa mais distante. Mas seu trajeto até o centro de Maceió quadruplicou de tamanho, e ele está longe de seus entes queridos. “Você nasce no bairro; você cresce no bairro; você faz amigos. Quando você se muda para outro bairro, começa tudo de novo, do zero. Não é a mesma coisa”, explicou Bezerra.

Morador do bairro de Bom Parto, um dos mais atingidos pelo afundamento do solo causado pela Braskem, observa a destruição no seu quarto de dormir: uma das 60 mil pessoas que tiveram os rumos de suas vidas alteradas em Maceió. AP Photo/Eraldo Peres

Esses são vislumbres de uma tragédia muito mais ampla causada pelo sal-gema, este insumo químico - fundamental para o cloreto de polivinila (PVC) e outros plásticos - cuja exploração vem marcando o destino de uma cidade e muitos de seus moradores.

O sal-gema no comércio brasileiro

Em 2018, a maior empresa petroquímica do Brasil, a Braskem, exportou mais de 1,4 milhão de toneladas de polímeros, sendo que quase metade desse volume foi destinada à Argentina, Paraguai e Uruguai. Nos últimos anos, o polietileno - o tipo mais comum de plástico, usado principalmente para embalagens - emergiu como o principal polímero exportado pela empresa. A fábrica de cloro e álcalis de Maceió é uma importante produtora de componentes cruciais para vários setores, incluindo a produção de PVC.

O PVC é desejável devido a seus baixos custos de produção, alta resistência química, características mecânicas favoráveis e resistência à água e às condições climáticas.

Como todas as commodities, o setor de plástico é importante para garantir que mais dinheiro entre em um país do que o que sai dele. Os artigos de plástico (como chapas, folhas, filmes, fitas e tiras de plástico) estiveram entre os 100 produtos mais procurados produzidos no Brasil em 2022. O Brasil exporta a maior parte de seus plásticos processados (luvas de borracha, poliéster, etc.) para os Estados Unidos, Peru e Paraguai.

Problemas legais

A Braskem enfrenta um passivo total potencial de R$ 34 bilhões (US$ 6,9 bilhões) por questões decorrentes de sua mina de sal-gema. Uma parte significativa dessa dívida - cerca de R$ 17,7 bilhões (US$ 3,6 bilhões) - é devida ao estado de Alagoas, com o qual a Braskem ainda não chegou a um acordo definitivo pela exploração do local.

A extração de sal-gema envolveu a perfuração de 35 poços ao longo de várias décadas nas proximidades da Lagoa Mundaú. E agora, a Braskem enfrenta uma nova ação judicial, no valor de R$ 997 milhões (US$ 203 milhões), pelos danos causados por suas minas de sal.

A empresa já alocou R$ 14,4 bilhões (US$ 2,9 bilhões) para tratar de problemas relacionados ao afundamento do solo atribuídos às suas atividades. Deste total, R$ 9,2 bilhões (US$ 1,9 bilhão) foram desembolsados desde 2018, ano em que a crise se intensificou devido à formação de rachaduras em ruas e edifícios em cinco bairros. As atividades de mineração de sal da empresa na região foram interrompidas em 2019.

Uma tragédia anunciada

Os alertas para o grave problema foram dados pelos professores eméritos Abel Galindo e José Geraldo Marques. Galindo foi chefe do setor de meio ambiente de Alagoas na década de 1970, sob o comando do então governador Divaldo Suruagy, durante a ditadura civil-militar do Brasil.

Galindo foi autor de um relatório contrário à instalação de minas de extração de sal-gema em Maceió. Tudo o que ele previu em seu relatório está acontecendo agora.

Na década de 1980, pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) já alertavam sobre o afundamento do solo causado pela mineração de sal-gema, devido ao aumento do lençol freático em níveis mais altos do subsolo, que acabariam por inundar as cavernas e buracos mais baixos.

Em 2011, outro estudo publicado na revista científica Engineering Geology previu que o solo poderia afundar até 1,5 metro em algumas áreas da cidade.

Desde o início, a sociedade civil de Maceió criticou a localização inadequada das minas, que ficam muito próximas a bairros populosos e a metros da Lagoa Mundaú - um centro de biodiversidade.

Após um acidente químico em dezembro de 1984 na fábrica de pesticidas Union Carbide em Bhopal, na Índia, os jornalistas Érico Abreu e Mário Lima alertaram que um acidente semelhante poderia acontecer em Maceió.

Mas, em 1985, a Braskem começou a se expandir, gerando uma nova reação da população. Dessa vez, ela foi organizada por membros de esquerda do conselho municipal e a ONG Movimento Pela Vida.

Centenas de casas abandonadas devido ao afundamento do solo: resultado de quatro décadas de exploração inadequada e ouvidos moucos para alertas de especialistas. AP Photo/Eraldo Peres

Agora tudo está chegando ao fim. Em dezembro de 2023, a Polícia Federal (PF) cumpriu 14 mandados de busca e apreensão em Maceió, Rio de Janeiro e Aracaju. Suas investigações encontraram evidências de que a mineração realizada na unidade de Maceió da Braskem não “seguiu os parâmetros de segurança estabelecidos na literatura científica e nos respectivos planos de mineração, que tinham como objetivo garantir a estabilidade das minas e a segurança da população que vive na superfície”.

Além disso, os ativistas denunciaram os acordos firmados entre a Braskem e as autoridades locais por não indenizarem adequadamente as populações das áreas afetadas.

Racismo ambiental

Nunca é demais enfatizar que essa história não é um caso isolado. Ela é a regra. As populações marginalizadas são afetadas de forma assimétrica em todos os estágios do ciclo de produção de plásticos - especialmente na extração da matéria-prima.

Esses desastres ambientais - um termo enganoso, já que são em grande parte causados pelo homem, e são absolutamente previsíveis - reproduzem e reforçam desigualdades raciais e socioeconômicas preexistentes no mundo inteiramente, mas especialmente no Brasil.

Estudos nos Estados Unidos indicam um risco maior de acidentes químicos e exposição a substâncias tóxicas em áreas com maior número de pessoas pretas, pardas e indígenas, ou com maiores níveis de pobreza, já que os poluidores corporativos poluidoras constroem suas instalações desproporcionalmente em comunidades de baixa renda e de minorias.

“Não é coincidência”, explica Marcos Bernadino de Carvalho, professor de gestão ambiental de gestão ambiental da Universidade de São Paulo, “que as pessoas que acabam sendo vitimadas por esse processo de degradação acabam sendo pessoas não apenas vulneráveis e empobrecidas, mas os negros”.

Desde a década de 1950, os setores extrativistas têm se expandido no Sul Global. Seus produtos - edifícios, máquinas, infraestrutura de energia etc. - permeiam nossas vidas. Esses setores prejudicam o meio ambiente ao represar rios, desmatar florestas e poluir o ar e a água, prejudicando a saúde de seres humanos e não humanos. O capitalismo externaliza esse dano, tratando-o como um custo de produção insignificante.

Essa atitude é reforçada pela desconexão espacial entre produtores e consumidores. Em uma economia globalizada, os consumidores geralmente estão fisicamente distantes do processo de produção. Isso pode isolá-los da destruição que a produção causa.

O componente racial problematiza ainda mais essa dinâmica. Os maiores consumidores são brancos no Norte Global. Enquanto isso, a produção extrativista e seus custos ambientais afetam de forma mais aguda as comunidades da linha de frente no Sul Global.

Em resumo, no capitalismo global, as pessoas pobres de cor sofrem para que os brancos ricos possam desfrutar de conforto.

O caso Brumadinho e a destruição extrativista

Maceió é apenas a última de uma longa lista de comunidades brasileiras devastadas pela exploração extrativista. Não há no Brasil quem não lembre que, há apenas cinco anos, a barragem de rejeitos de produção de minério de fero da cidade mineira de Brumadinho desmoronou, matando 272 pessoas e envenenando o rio Doce até o Oceano Atlântico. E até agora, ninguém foi devidamente responsabilizado.

A barragem de rejeitos de Brumadinho era fundamental para a indústria de minério de ferro do Brasil, que é a terceira maior do mundo em volume de produção. A indústria automobilística alemã depende da importação de minério de ferro brasileiro. Esse é apenas um exemplo de como as pessoas no Sul Global sofrem para que suas contrapartes mais ricas do norte possam ter luxos.

O Brasil não é o único a passar por essas tragédias. Em todo o mundo, inúmeras comunidades rurais sofrem efeitos deletérios muito tempo após o término das operações de mineração.

Do Gabão a Papua Nova Guiné, a mineração continua a deixar um rastro de degradação ambiental e e dificuldades socioeconômicas nas localidades afetadas.

Um estudo recente produzido por analistas da ONU mostrou que as atividades extrativistas “são responsáveis por 60% dos impactos globais do aquecimento, incluindo 40% do impacto da poluição do ar e mais de 90% do estresse hídrico global e da perda de biodiversidade relacionada à terra”.

Apesar desses números terríveis, a extração mundial de matérias-primas está projetada para aumentar 60% até 2060.

Conclusão

A Braskem afirma ter um ambicioso plano de sustentabilidade, alinhado com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas e o Acordo de Paris, com foco em sete dimensões: saúde e segurança, resultados financeiros e econômicos, eliminação de resíduos plásticos, mitigação das mudanças climáticas, ecoeficiência operacional, responsabilidade social, direitos humanos e inovação sustentável.

Em setembro de 2022, Marcelo Arantes de Carvalho, um dos vice-presidentes globais da Braskem, vangloriou-se no LinkedIn de que o principal jornal financeiro do Brasil nomeou a Braskem “a melhor empresa do setor químico e petroquímico” no Brasil por causa de suas práticas de ESG (sigla em inglês para políticas ambientais, sociais e de governança corporativa).

Enquanto dezenas de milhares de pessoas em Maceió foram forçadas a evacuar suas comunidades, a Braskem distribuiu todos os seus lucros como dividendos aos acionistas. E lançou um novo logotipo para “marcar o início de uma nova fase”, no qual a letra B tem o formato de uma seta, indicando a estratégia da empresa voltada para o futuro, enquanto as cores azul e amarela “representam aspectos como alcance global, foco em sustentabilidade e a força das relações humanas”.

Que isso seja um lembrete claro de que as alegações de sustentabilidade corporativa são pouco mais do que cortinas de fumaça para dar continuidade aos negócios como de costume. A busca pelo lucro é incompatível com qualquer tentativa real de garantir um planeta capaz de sustentar a vida. Os setores extrativistas são parte integrante do capitalismo, que exige a exploração de ambientes e comunidades. A conversão de matérias-primas em dinheiro é “o coração da economia capitalista moderna”.

A degradação ambiental e seus custos sociais não são incidentais. O risco da mudança climática é intensificado pela economia global. Não podemos reduzir o primeiro sem mudar fundamentalmente a segunda.

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