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Homem folheia um livro na frente de um computador
Cópia marcada de Virginia Woolf de seu primeiro romance: recentemente digitalizada. The University of Sydney/Stefanie Zingsheim, Author provided

Relíquia de Virginia Woolf ressurge e é digitalizada

Um dos dois exemplares existentes do primeiro romance de Virginia Woolf, ‘The Voyage Out’ (1915), com as notas de revisão manuscritas para uma edição americana foi redescoberto na coleção de livros raros da Biblioteca Fisher da Universidade de Sydney, na Austrália.

Adquirida no final da década de 1970, a obra original havia sido erroneamente guardada com os livros de ciências do acervo. Quando o funcionário Simon Cooper encontrou a relíquia em 2021, ele imediatamente compreendeu o valor do achado.

O exemplar em Sydney, único original disponível ao público, agora também está on-line. Foi digitalizado para permitir que pesquisadores e leitores em geral estudem e observem as intervenções editoriais da icônica escritora inglesa.

The Voyage Out (intitulado no Brasil como ‘A viagem’) é sobre Rachel Vinrace e um conjunto de personagens desconexos que embarcam no navio de seu pai rumo à América do Sul. Trata-se de uma jornada de autodescoberta que satiriza a sociedade eduardiana da época na Inglaterra (sob o reinado de Eduardo VII na primeira década do século XX).

O exemplar de The Voyage Out com anotações escritas à mão pela própria Virginia Woolf é um dos dois únicos originais existentes no mundo e o único disponível ao público. The University of Sydney/Stefanie Zingsheim, Author provided

Woolf remoeu anos de rascunhos, abandonando a primeira versão em 1912, com o título de ‘Melymbrosia’, em homenagem ao alimento dos deuses gregos. O debut quase terminou com a carreira da escritora. As ideias sobre colonialismo, sufrágio feminino e relações de gênero foram consideradas perigosas demais para uma autora iniciante.

Durante os três anos seguintes, ela compôs o romance (rebatizado) que temos hoje, publicado pelo meio-irmão Gerald Duckworth em Londres, em 1915. Foi um momento pivô para o colapso mental que sofreu e tratou ao longo do ano restante, quando também começou a escrever um de seus diários.

Preparando a primeira edição de The Voyage Out para os Estados Unidos, publicada por George H. Doran, em Nova York, em 1920, Woolf anotou uma série de observações, revisando o próprio texto. Apenas dois exemplares do romance contêm a evidência desse processo, com as anotações manuscritas da autora e fragmentos de páginas datilografadas coladas em cada um.

Por que Virginia Woolf revisou A viagem?

O que motivou Woolf a revisar seu texto? As revisões foram feitas após o colapso, ao reativar a carreira literária com o lançamento do segundo romance, Night and Day (‘Noite e Dia’), publicado em 1919.

Virginia Woolf, em retrato de George Charles Beresford)/Wikimedia Commons

Pesquisadores sugerem que a escritora desejava demarcar alguma distância entre o estresse pessoal e a angústia da protagonista de ‘A viagem’, Rachel Vinrace. Ambas, autora e personagem, mantinham semelhanças, como figuras paternas dominantes, a perda precoce da mãe, a educação em casa e não na escola. Desnudar a psiquê da protagonista de forma tão explícita causou certo desconforto a Woolf. Uma nova edição pode ter sido a oportunidade de reformular.

É uma teoria plausível. Mas será que as evidências das correções de Woolf confirmam? Em dois trechos principais do texto, a maioria das alterações indica que são momentos cruciais da narrativa.

O primeiro se refere ao capítulo XVI e altera a conversa entre Rachel e Terence Hewet –o par da trama romântica– para reduzir o acesso a pensamentos tão profundos da protagonista. Parágrafos inteiros são substituídos por texto datilografado, colado por cima diretamente na página. Na nova versão, a narração descreve Rachel sem a garantia de compreendê-la.

De fato, o efeito dilui alguns elementos autobiográficos incômodos na obra, mas também marca uma significativa mudança na forma de narrar a mente dos personagens.

A narração é moldada pelos limites do próprio personagem: as profundezas da subjetividade de Rachel são desconhecidas até mesmo para ela. O estilo carrega traços da psicologia moderna e da teoria do inconsciente de Freud, que ecoavam na época em que o romance foi escrito.

A revolução modernista de Virginia Woolf

Tamanha inovação sinalizou uma mudança épica na ficção modernista, durante a transição dos séculos XIX e XX, caracterizada por uma ruptura autoconsciente com as tradicionais formas de escrever.

A imprevisibilidade dos personagens de Woolf começa com as regiões obscuras da mente. Não mais regia o realismo, em que os pensamentos e as ações são reconhecíveis (e muitas vezes transmitidos por uma narração onisciente). Em vez disso, a narrativa oferece um retrato da complexa pessoa moderna, que responde ao mundo de maneiras não totalmente responsáveis pela razão.

O outro conjunto significativo de revisões no exemplar em Sydney está no capítulo XXV. Rachel e Terence tentam navegar pelo futuro do nascente relacionamento –que coincide com o início da febre e declínio da protagonista.

Longas passagens estão marcadas para serem excluídas (embora nenhuma tenha sido de fato excluída na primeira edição americana). Os fragmentos se referem principalmente à consciência febril de Rachel e às atitudes de Terence em relação ao amor romântico e seu impacto em uma vida artística.

Mais uma vez, Woolf pode ter desejado se distanciar dos pensamentos íntimos dos personagens, recorrendo, então, a uma ambiguidade, em que palavras e gestos devem ser interpretados pelos leitores, em vez de guiados por uma narrativa consciente.

O romance de estreia da escritora se situa entre as convenções do realismo herdadas do século XIX e a nova ficção experimental do século XX. O texto encontrado em Sydney conta uma parte importante dessa história.

O que vemos ilumina o desenvolvimento da técnica de Virginia Woolf e sua evolução ao estilo indireto livre pelo qual ficou famosa em romances posteriores, como Mrs. Dalloway (homônimo no Brasil), To the Lighthouse (‘Ao Farol’) e The Waves (‘As Ondas’).

A emblemática escritora estava no centro da revolução em forma de romance na era modernista. A evidência está nas anotações de The Voyage Out.

This article was originally published in English

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