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cientista trabalha em um computador em um laboratório
Cientista analisando uma cadeia de DNA: uma mutação genética pode ser comparada a um imenso livro de receitas, com uma página muito importante faltando. (Shutterstock)

Tratar doenças genéticas é quase como fazer uma receita de bolo. Só que ‘um pouco’ mais difícil

Sempre fui fascinada pela genética, um ramo da biologia que pode explicar tanto a semelhança impressionante entre diferentes membros de uma família como o fato de os morangueiros serem resistentes às geadas.

Também tenho uma ligação pessoal com a genética. Quando crescia, soube que alguns membros da minha família tinham disferlinopatia, uma distrofia muscular. Vi a minha mãe deixar de conseguir subir escadas e ter de usar uma bengala, um andador e depois uma cadeira de rodas para se deslocar. Os músculos das pernas dela reparavam-se cada vez menos e ficavam cada vez mais fracos.

Os meus pais me explicaram que todos estes problemas se deviam a um erro de uma única letra numa enorme sequência de DNA composta por bilhões de letras. Este erro impede a produção da proteína responsável pela reparação dos músculos dos braços e das pernas.

Hoje, sou doutoranda em medicina molecular e estudo o tratamento de doenças hereditárias para poder ajudar famílias como a minha. Neste texto, proponho-me desmistificar as doenças hereditárias e as investigações em curso para as tratar.

Fácil? Não é bem assim

Imagine o DNA como um livro de receitas, onde cada gene representa um prato diferente. Na página da receita do bolo de chocolate, há uma bela imagem, mas falta alguma informação. Diz para pré-aquecer o forno e pesar a farinha, mas o resto da página está rasgada. Assim, é impossível fazer este bolo. O resultado é um banquete composto por todas as outras receitas, mas sem o bolo de chocolate, que é particularmente importante.

O mesmo se aplica às doenças hereditárias. O corpo pode produzir todas as proteínas de que necessita, exceto uma. No caso da distrofia muscular que afeta a minha família, é a que repara os músculos dos braços e das pernas que falta na receita. Cada doença hereditária tem a sua própria página danificada no seu livro de receitas.

Uma mutação pode causar a ausência de uma proteína que tem uma função própria. (Camille Bouchard), Provided by the author

Mais concretamente, um erro no DNA chama-se mutação. Existem diferentes tipos de mutações. Algumas são causadas pela adição de letras, como incluir um ingrediente numa receita. Isto pode levar a um delicioso bolo de chocolate com morangos, ou a um bolo que não é comestível porque foi “temperado” com óleo de motor.

Outras mutações são causadas pela remoção (ou eliminação) de uma ou mais letras (ou ingredientes), ou por substituições que trocam uma letra por outra. Todas estas modificações podem levar a alterações favoráveis ou sem impacto, como a capacidade de respirar fora de água ou o aparecimento dos primeiros olhos azuis na evolução. Mas também podem provocar alterações desfavoráveis, como as doenças hereditárias ou o câncer.

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Existem diferentes tipos de mutações. (Camille Bouchard), Provided by the author, Fourni par l'auteur

Consertar o DNA

Desde muito cedo percebi que a minha mãe estava doente devido a um erro no seu gene, mas que eu não iria desenvolver a doença porque o meu pai não tinha nenhum erro no seu. Isto é o que se chama uma doença recessiva, uma vez que necessita de um erro no gene de cada um dos dois pais para se manifestar. Outras doenças hereditárias são dominantes, o que significa que uma mutação no DNA transmitida por apenas um único dos pais é suficiente para afetar a produção de uma proteína.

Como parte da minha pesquisa, analiso a sequência de DNA de cada doente com disferlinopatia para ver onde está o erro.

Para tentar corrigi-lo, utilizo a Prime editing, uma técnica que corta o DNA próximo da mutação e reescreve a sequência corretamente. A Prime editing é uma versão da CRISPR-Cas9, uma técnica que corta o DNA num determinado ponto.

A Prime editing utiliza uma proteína chamada Cas9, que ocorre naturalmente nas bactérias. Ela permite destruir a sequência de DNA dos vírus que as podem infetar. A função da proteína Cas9 é reconhecer uma sequência e cortá-la.

Quando a utilizamos nas nossas células humanas, ligamos a Cas9 a outra proteína, que reescreve o DNA utilizando um modelo. A partir daí, é fornecida uma sequência sem erros para que a célula possa fabricar a proteína. É um pouco como encontrar a página original no livro de receitas danificado e inserir uma cópia dela para poder finalmente servir o bolo de chocolate.

Um passo na direção certa

Então, por que ainda não ouvimos falar da Prime editing, se ela pode tratar várias doenças? Porque a técnica ainda não está totalmente desenvolvida. De fato, conseguimos reparar o DNA diretamente nas células em laboratório, mas falta uma forma de fazer chegar as duas grandes proteínas (Cas9 e a que reescreve) às células que precisam do tratamento (por exemplo, ao núcleos dos músculos afectados).

A Prime editing é uma técnica que está sendo desenvolvida para corrigir mutações em vários genes. (Camille Bouchard), Provided by the author

Em outras palavras, encontramos a receita do bolo, mas ela é muito grande para caber num e-mail ou num envelope. Muitos laboratórios, incluindo o meu, estão à procura de um veículo de entrega eficiente e seguro para que vire um tratamento.

This article was originally published in French

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