Menu Close
O professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas UFRGS Rodrigo Paiva em ação nas margens do Guaíba: acompanhamento das precipitações indicou risco máximo de inundação dois dias antes delas acontecerem, mesmo assim não houve tempo hábil para o estado se preparar.

O dia a dia de uma tragédia anunciada: o trabalho de um hidrólogo nas cheias do RS

As últimas semanas têm sido muito intensas para a população do Rio Grande Sul: sobretudo para as pessoas que foram diretamente afetadas pelas cheias, mas também para quem estava ajudando, cada um como podia; para os tomadores de decisão; e para os pesquisadores e acadêmicos, que têm trabalhado para que os conhecimentos adquiridos nas instituições de ensino e pesquisa sejam aplicados na solução dos problemas que estamos vivendo.

Ainda nem consegui parar para pensar de fato em tudo o que aconteceu. Como pesquisador do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), eu e meus colegas temos trabalhado muitas vezes até 18 horas por dia, desde antes desse evento climático começar a mostrar os seus impactos. Foi uma reação natural, minha e de outros colegas, de buscar aplicar o nosso conhecimento nesse momento de resposta, de salvamento de vidas e agora também de retomada, fazendo com que a ciência seja usada para trazer o melhor para a sociedade.

Trabalho voluntário na produção de conhecimento

As previsões apontavam para a ocorrência de chuvas intensas a partir de domingo, 28 de abril. Na segunda, dia 29, começou a chover forte em algumas regiões do estado e nós, do IPH, nos preocupamos, porque as precipitações estavam muito elevadas.

A quarta-feira, feriado de 1° de maio, foi um dia muito intenso de trabalho, em que observamos as cheias dos rios Jacuí e Taquari, que levantavam receios até com a segurança das barragens. A equipe do IPH começou nesse dia a fazer muitas análises, mapas de profundidade e previsões dos níveis do Guaíba, para serem usados nas tomadas de decisão de emergência.

Foto mostra hidrólogo em um barco, com colete laranja, segurando uma régua junto a uma porta de metal. É possível ver a água cobrindo parte da porta e marcas de lama na parede, acima do nível da água
Rodrigo Paiva em trabalho de campo para medição do nível das águas. As marcas de lama nas fachadas mostram que essa foi a maior cheia da história de Porto Alegre. Arquivo pessoal do autor

E a previsão era de níveis elevadíssimos. Chegamos a desconfiar de que os cálculos talvez estivessem errados, porque eles apontavam para uma situação muito preocupante. Um dos cenários da nossa previsão mostrava uma cheia inédita, acima dos 5 metros. E foi o que de fato aconteceu.

Foi tudo muito rápido. Nesse mesmo dia, enviamos os resultados para colegas que trabalham na área, e também alertamos a mídia. Na quinta-feira, 2 de maio, de manhã, a cidade tomou a decisão de fazer fechamento das comportas. Na quinta à tarde, o Guaíba já havia superado os 4 metros de inundação.

Na quinta à noite, eu me lembro de estar conversando com colegas, e chegamos a cogitar a possibilidade de o Guaíba ultrapassar os 6 metros (que é o limite do sistema de proteção contra cheias de Porto Alegre) ou de, por alguma razão, o sistema falhar. Nunca havíamos imaginado isso. De fato, o nível do rio não chegou a 6 metros, mas o sistema de proteção falhou em praticamente todos os pontos.

Naquele momento, os colegas já tinham mapas das áreas que seriam impactadas. Então foi calculado, a partir de dados do Censo, quantas pessoas viviam nessas áreas, e vimos que estávamos lidando com um quantitativo de mais de 100 mil pessoas. E foi aí que me dei conta da magnitude do que estávamos vivendo: com a rapidez com que o rio estava subindo, se todas essas pessoas precisassem deixar as áreas de risco num intervalo curto de tempo, sem saber com um mínimo de antecedência o que estava acontecendo, ia ser uma tragédia.

Na sexta-feira, dia 3, acordamos assustados, com uma elevação ainda maior do Guaíba. Decidimos então voltar à mídia, divulgando mais fortemente as informações, mapas e previsões. A imprensa publicou o alerta e a informação viralizou.

O sistema de proteção de Porto Alegre é formado por diques, com um muro de concreto e aterros. Em alguns pontos, há comportas, que são abertas ou fechadas quando necessário. Além disso, há as casas de bombas, que bombeiam para fora a água excedente.

A parte fixa, que são muros, funcionou muito bem. Já a parte operável, que são as comportas e casas de bombas, falhou. As comportas não estavam devidamente vedadas, e as casas de bombas não deram conta do volume elevado. Assim, tudo o que o sistema conseguiu fazer foi retardar um pouco a entrada da água, que deveria acontecer entre sexta, 3, e sábado, 4, e ocorreu a partir do domingo, dia 5. Toda a área que marcamos como mancha de inundação em nossas previsões foi efetivamente atingida.

Mapa mostra a cidade de Porto Alegre, com boa parte do mapa marcado com uma cor roxa, demarcando a mancha de inundação
Mapa divulgado por grupo da UFRGS projeta o impacto da inundação em diferentes bairros da Capital em caso de rompimento do sistema de defesa da cidade. GZH

Esse trabalho de realização de mapeamentos e projeções segue até hoje. No IPH, temos dedicado nossas manhãs a essas previsões. Mas agora, passado o pior momento, já começamos também a nos preocupar com a reconstrução. Muitos pesquisadores estão se dedicando a escrever orientações para diversos aspectos do problema, como recomendações relacionadas, por exemplo, à questão de como usar água num cenário de racionamento, como o que vivenciamos aqui.

Acabamos de terminar uma nota técnica sobre “Critérios hidrológicos para adaptação à mudança climática: Chuvas e cheias extremas na Região Sul do Brasil”, para aplicações em projetos de infraestrutura, mapeamento de áreas de risco e planejamento durante e após a recuperação dos desastres de 2023 e 2024 na região Sul do Brasil. É baseada em resultado de projeto de pesquisa recente para Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico.

Observamos que o sul do Brasil precisa se preparar para um aumento de 20% na magnitude e até quatro vezes na frequência das cheias na região. Para a reconstrução da infraestrutura danificada durante as cheias extremas que atingiram o estado, recomenda-se fortemente a adoção dos critérios apresentados na nota técnica, para minimizar potenciais impactos em eventos extremos futuros.

Retomada com aprendizado

Eu espero que, com esse evento, fiquem pelo menos dois aprendizados: o amadurecimento da nossa cultura de prevenção aos desastres naturais e o reconhecimento da mudança climática.


Read more: Comunicação de riscos é crucial para a prevenção de desastres climáticos, mas segue negligenciada no Brasil


A cultura de prevenção dá muito trabalho. Não é só reconstruir ou fazer uma obra, é um trabalho permanente, com mapeamento de áreas de risco, educação da população, fortalecimento dos sistemas de previsão de alerta, zoneamento do uso do solo. A população precisa saber onde pode ou não ocupar. Em locais de muito risco, a solução pode ser a construção de parques. Outros locais, de menor risco, podem voltar a ser ocupados, mas as pessoas precisam saber o que fazer, ter uma rota de fuga, e cada cidadão deveria estar ciente dos riscos a que está submetido e qual é o plano de ação emergencial, como para o caso de uma falha no sistema de diques.

Já em relação à mudança climática, talvez agora as pessoas percebam que ela já é uma questão concreta. Uma coisa é falarmos “Daqui a 20 anos vai ter mais cheias”, ou “É possível que tenhamos uma cheia como a de 80 anos atrás”. Mas agora, com tantas evidências do que são esses eventos extremos, talvez possamos, nessa etapa de reconstrução, construir melhor.

As pessoas têm pressa, estão desassistidas e querem voltar pra casa. Mas, nesse processo, é preciso considerar esses novos critérios hidrológicos: qual é o tamanho das cheias, o volume de água, tudo no contexto das mudanças climáticas. Precisamos pensar em projetos que possam ser adaptáveis no futuro, escaláveis, de forma que eles possam ir aumentando sua resistência na medida da necessidade. Além disso, as construções deveriam ser resilientes e capazes de conviver e resistir a esses extremos; elas precisam ser seguras a ponto de, quando acontecer, elas ajudarem a salvar vidas.

Em 2023, tivemos o que era até então o maior desastre dos últimos tempos no Rio Grande do Sul. Nosso Instituto escreveu uma nota com recomendações do que deveria ser feito, de ações de curto, médio e longo prazo. Num primeiro momento se falou muito disso, mas não aproveitamos aquele momento de luto para mais aprendizado. Em Porto Alegre, especificamente, o debate público perdeu muito tempo com questões como a substituição desse sistema por um mais bonito, que valorizasse mais o centro da cidade, a região do Cais, quando deveríamos estar mais preocupado com a segurança.

Talvez agora seja hora de aprendermos com o problema para nos tornarmos mais preparados para eventos como o que estamos enfrentando, e que se tornarão mais frequentes daqui para frente.

Want to write?

Write an article and join a growing community of more than 186,100 academics and researchers from 4,986 institutions.

Register now